A FACADA



















Agora escuto no rádio o boletim médico do es-tado de saúde do candidato presidenciável. Do jeito que o locutor narra, dá impressão de que muitos ouvintes já estejam até com lenços descartáveis à mão, que desespero, meu deus. Sim, a voz dele é triste, quase embargada, até senti pena dele, do jornalista. 

Do candidato? Bem, também estou perplexo, estou choca-do. Barbaridade, a que ponto chegou a hipocrisia, que absurdo, isso realmente é terrível. Parece que o mito agora conseguiu mobilizar a todos. 

A mídia, a sociedade brasileira, a opinião pública, enfim, o todo, agora só falam dele o tempo inteiro. A facada produziu grande impacto, enorme efeito trágico e bem oportuno. Segundo o jornalista, agora de voz mais alterada, o agressor sofre de problemas psíquicos. Por sorte, não houve linchamento. Aliás, algo bastante curioso, muito estranho. 

Na delegacia, ele declarou que atuou amando de Deus. De fato, basta analisar o perfil nas redes sociais, se bem que agora ele não detém mais a senha.

Desliguei o rádio. Estou cheio disso tudo. Também sinto uma certa vergonha de ser brasileiro. Sim, pois veja bem, esse Bolsonaro vem ameaçando o povo já de algum tempo, no entanto, tem muita gente o idolatrando. 

Se não me falha a memória, há mais de dois ou três anos, no impeachment contra a Dilma, ele também idolatrou até o Brilhante Ustra, que, segundo consta, foi torturador do DOI-CODI, em São Paulo, sim, algoz responsável pelo desaparecimento de muitas pessoas; por isso mesmo, Bolsonaro defende a tortura, acrescentando que a ditadura matou pouca gente, pois tinha que matar todos; também declarou acerca dos familiares que ainda buscavam o paradeiro dos seus entes desaparecidos no período militar, dizendo que “quem gosta de procurar osso é cachorro”; além disso, diante da deputada federal (precisa citar quem?) se comportou com muita falta de hombridade e cavalhei-rismo, faltando com respeito e educação, polidez, dizendo que “só não a estupraria porque ela não merecia”; enfim, que metralhará a rocinha; que matará todos os petistas, que pelo menos uns 30 mil, realizando aquele gesto idiota de empunhar uma fictícia metralhadora disparando a esmo, em campanha eleitoral no Acre; que não é racista, nunca foi, mas zomba com escárnio os quilombolas diante de uma plateia de judeus, cujos antepassados foram massacrados por racismo no holocausto insano provocado pelos nazistas. 

Assim se comporta esse cidadão que se diz cristão, que declara Deus acima de tudo, mas, em simultâneo, propaga ódio, preconceito, homofobia e xenofobia, e tudo assim, de modo aparentemente natural, brincalhão, justificando-se nas entrevistas da TV. 

Sim, brincalhão ao provocar até risos dentre aplausos de seus admiradores, bradando, mito, como alcunha de herói. Lentamente ele está contagiando a todos, recrutando cada vez mais seguidores. Possivelmente, muitas pessoas devem possuir a mesma índole, tipo MBL , ou adeptos da intervenção militar no país, os quais tentam mobilizar com protestos ainda isolados, propagando esse ideal nostálgico como projeto de ele ser um mito, surgindo como messias, aliás, até consta no sobrenome. 

No entanto, que ideal? Que projeto? Messias? Ora, é somente ódio que ele prega! Faz escárnio, debocha, só isso! Por várias vezes tenta calar a voz da perseguida esquerda pela violência! Isso mesmo, seus seguidores chegam a agredir nas ruas qualquer pessoa que estiver usando camisa da cor vermelha, o que dirá do PT ou boné do MST! 

Os acontecimentos dos partidários são muitos, não são poucos, pois se analisarmos bem toda a situação que se criou em volta do seu nome, quem nos garante que até mesmo o assassinato da vereadora Marielle Franco não tenha algum ou alguns deles, também? 

Bem, são muitos militares apoiadores, evidentemente; ora, por que então não haveria de ter pelo menos um ou mais, envolvido? E o que dizer dos atentados contra a caravana do Lula no sul do país? É fato incontestável: havia muitos deles protestando. Além disso, o que dizer da senadora gaúcha (precisa citar o nome?), apoiando o escorraçamento de petistas em praça pública, ao declarar, em discurso, esclarecen-do que “é assim mesmo que se faz, na minha terra, baixamos o relho no lombo”

E o que dizer do ataque contra o acampamento Marisa Letícia, em Curitiba, onde os agressores apareceram disparando tiros enquanto gritavam raivosamente: “viva Bolsonaro”? Sim, inclusive uma das vítimas foi atingida no pescoço e até hoje sofre duras consequências. Será que não lembram ou não sabem disso? 

Se não sabem disso, até entendo. A mídia pouco divulga, é verdade. Apenas notinhas de rodapés, breves comunicados, francamente. Entretanto, consulte as fontes corretas. Consulte Google, YouTube, porque as devidas notícias da mídia mais conservadora não fazem muita questão de destacar isso como manchetes. Por quê? Dá impressão de que tanto pior tanto melhor irá ficar. Aliás, muitos sabem disso. Há muitas testemunhas de atos violentos contra várias pessoas em vários lugares do país. São universidades, grupos e estudantes desrespeitados, bem como muitos trabalhadores, mas todos bradando: “fora fascista”, “fascistas não passarão”! Isso sem mencionar os festejos exibicionistas dos bolsonaristas durante vários massacres nas penitenciárias ou até mesmo dos assassinatos de integrantes do MST! 

Então? Será que tudo isso ficará esquecido? Por acaso nada disso é motivo de produzir grande impacto ou comoção na sociedade também? Será que nenhum deles não é brasileiro igual a nós? 

Bolsonaro, segundo disseram os médicos nas entrevistas, precisou de muito sangue durante a cirurgia, tal a gravidade do ataque insano; ora, sabemos, por experiência própria, que todo sangue doado pode, sim, ser utilizado em larga transfusão como essas, já que precisou de cirurgia. 

Pois, bem, quem garante não ter recebido sangue de algum petista ou quilombola que tanto ele persegue e maltrata? Quem lhe garante não ter sido de um gay ou de um possível comunista? Sim, comunista! Será que nada disso ele não pensou ou refletiu de verdade? 

Não entendo esse mito ser tão esplêndido e admirado por boa parte da sociedade brasileira. Sinceramente. Quem passa por uma cirurgia complexa, com anestesia, transfusão, sob atendimento de profissionais da saúde, zelosos, não seria para ele, depois, parar de continuar conduzindo gestos de ainda matar, executar, dizimar, como ainda demonstrou no leito do hospital diante das câmeras de TV? Não deveria ser gestos de paz, convalescimento e agradecimento? 

Sim. Foi salvo, protegido, não foi? Tantos cuidados, carinhos, atenção, em sua volta! Será que a cor da pele, a crença religiosa, a ideologia política, será que isso é tão importante? Tenho certeza que essa hora de con-fraternização com a vida, veja bem, muitos de nós estaríamos agradecendo a Deus, o criador de todos os mortais; essa hora, por exemplo, pensaríamos o que seria das nossas vidas se não houvesse doadores de sangue voluntários. Ora, não foi nem capaz de aproveitar o instante para incentivar a campanha de doação sem gastar um tostão na mídia. 

Por isso, não entendo gente assim. Na verdade, nem quero entender mais. As diversidades dos cristãos são muitas, é verdade, até se escapam dos dogmatismos, das crenças, da fé entre eles mesmos. Portanto, se comparamos esses martírios absurdos, podemos também nos equivocar, sejam falsos ou verdadeiros, difícil mesmo de analisar, quiçá acreditar. Messias? Ora, sejamos francos, sejamos sinceros conosco, mesmos, ele não passa de um impostor, um fariseu, um vigarista fantasiado de líder político!
















A MORTE

















A morte natural é tão fria. 
É cruelmente gélida, absurda.
Se apaga concretizando a chama diminuta no pavio
Também a morte da chama derretida
Todo o belo sonho desmedido 
Eternidade de outrora
Neste mero brilho pálido de agora
Aqui jaz afogado o líquido rígido 
O calor morno da cera movediça
Ar das entranhas da resistência química
Resto de luz súbita para o além-distante:
O último suspiro de vida. 




CONVERSAS QUASE LÍRICAS (II)































O poema ela não lia.
Não escrevia a vida, sentia.
Nada existia o verso, vivia.
Não existia a rima, sofria.
Nem a voz calada, emitia.
Era tão belo admirar.
Era sempre tão doce constatar:
O brilho do seu olhar a me olhar.

RÉQUIEM






























Nós, morre, sim.
Ela é singularmente pural.
Sim, mais de uma vez
Perdem-se as contas de quantas vezes 
Se morre em cada amanhecer. 
A existência nem liga, esquece de nós:
Eu de você, você de mim.
Sim, nós morremos com os dias.
Não adianta lamentos, suspiros.
A vida não sabe mais mentir como antes,
Quando a verdade da morte parecia até nunca existir.

UM CARA DO MEU TEMPO

Desenho à caneta

Sou antigo. Século XX. Século romano, claro. Porque, sob a escala do tempo científico, obviamente não sou tão antigo assim como se pensa ser; ao contrário, sou um mero viajante ainda recém-nascido, há cerca de 200 mil anos, então só estou passando por aqui, neste planeta de quase cinco bilhões de anos, em verso e prosa, claro, também com café ou chimarrão por companhia à solidão. Trago a nostalgia na bagagem de mão, mas também um pouco de insatisfação. Sou um cara do meu tempo revisando poeticamente meu passado sem glorificação, apenas recordando que sou do tempo do LP e fita cassete e televisão. Sou do tempo das reuniões de garagem, de dançar agarradinho ouvindo a lenta canção. Também do tempo de rasgar o verso, a rima parnasiana. Do tempo em que se amava ler um bom livro em paz, em silêncio, horas a fio. Do tempo, aliás, de entrar no sebo em busca do livro de bolso de menor preço, mesmo que já estivesse cheio de mofo e traça. Sou do tempo em que eu escrevia cartas às vezes longas, às vezes curtas, dependendo do humor ou graça do dia, e havia envelopes e selos de todos os tipos junto ao bloco de pauta. Sou do tempo que dava flores para a namorada sem ela achar isso antiquado ou coisa de besta, mas por entender querer só fazer um agrado perfumado, dissimulando meu desodorante barato debaixo dos braços. Também sou do tempo do caderninho de fiado do armazém da esquina, daquele pão de um quarto ou meio quilo, ou de fritar bolinhos de chuva para assistir à sessão da tarde esticado no sofá da sala, entre portas e janelas escancaradas para a rua. Sou do tempo do jornal arremessado no pátio, ou à varanda em dias de chão molhado pela chuva. Sou do tempo do portão de trinco entreaberto, meu cão vira-lata fugindo para um breve passeio até o poste da esquina. Enfim, sou do tempo de sentar no muro baixo da casa, conversar com a vizinha, com a turma, nossos melhores amigos, então riamos, brincávamos, ou, em noite estrelada, em silêncio, admirávamos a lua cheia com ares de filósofo solene, pensativo. Sou do tempo de a gente respeitar a liberdade, mesmo com militares tiranos em nossos calcanhares. Sou do tempo dos festivais livres, apesar da música brasileira sob censura. Aliás, sou do tempo em que se ouvia Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius de Moraes, Chico Buarque de Holanda, Caetano e Gil e Belchior. Eram nossas tábuas salva-vidas românticas, líricas, que, durante a tempestade das influências, clamava por nossa própria musicalidade. Sou do tempo em que não se confundia o indigenista Vilas Boas com o erudito Villa Lobos, pois ambos amavam a floresta amazônica. Sou do tempo em transição, a perda da democracia por poderes da violência do AI-5. Sim, do tempo em que se matava, antes, para se perguntar depois. Sou do tempo que votei no sindicalista do ABC. Sou do tempo em que, apesar de a opinião pública andar ludibriada, acreditava na minha verdade, no meu amor e na minha razão, cujo triangulo era meu Norte. Por tudo isso, também era do tempo em que não se deveria criticar o sentimento da nação. Também não confundir a gentileza com temor ou covardia. Isso, claro, isso por questão de ter que ouvir mais e falar menos. Não que isso fosse questão de abuso de autoridade, mas porque todos têm duas orelhas e uma boca, portanto, falar menos, escutar mais. Afinal, poderia ser considerado desrespeito, falta de educação querer ensinar os mais velhos, mesmo que a maioria fosse, sim, da pá virada, não importava, a gente precisava continuar nossa caminhada.