DE TRAGÉDIA EM TRAGÉDIA ALÉM DO BANG-BANG


Tantas atrocidades ao meio de bizarrices acontecendo em simultâneo. Os meios tornam-se os fins, os fins tornam-se os meios, e fica tudo por isso mesmo, sem a necessidade de justificar estas esquisitas atitudes, tintim por tintim. Ora, para que explicar, amiúde, se desde o começo tudo ficou assim, quando a placa com o nome de Marielle Franco, por exemplo, foi rasgada em plena campanha eleitoral, cerca de 7 meses depois do seu assassinato? 

Para que explicar os motivos que levaram ao incêndio do Museu Nacional se antes a necessidade de melhores reparos técnicos já estava previamente advertida? 

Falar nisso, lembremos da tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria. O prédio não havia nem sequer saída de emergência. Aliás, esses exemplos não evocariam por si só uma advertência quando também ocorreu a tragédia de Brumadinho após a tragédia de Mariana? 

E o que dizer das queimadas no Amazonas e centro oeste, inclusive atingindo o pantanal, quando já havia o prenúncio de encontro de incendiários pelo WhatsApp

O que dizer do óleo derramado em alto mar, logo atingindo as praias do Nordeste? Por acaso, apuraram-se as responsabilidades com seriedade, com mais afinco? 

Agora são notícias de assassinatos constantes. Muitos com envolvimento da segurança pública. Sempre assim, bala perdida, acidente com as mortes por engano. 

Não se precisa ir muito longe. Dentre tantos crimes ocorridos no ano de 2019, a morte do músico fuzilado com mais de 80 tiros ou a morte de estudantes da periferia do Rio de Janeiro, incluindo-se a menina Agatha, não passaram tão assim despercebidos. São crimes, sim, com responsabilidade do Estado por avalizar o excludente de ilicitude defendido pelo próprio presidente da república. Daí tragédias além do bang-bang. O ano já termina com quase 40 mil assassinatos no país, apesar de as estatísticas apontarem redução se comparada ao ano passado. Não imposta. São crimes. São mortes de inocentes, incluindo-se crianças e jovens, que morrem continuamente. Seja em dia útil, seja em dia de lazer, como agora, a recente morte de nove jovens que não possuíam nenhum histórico criminal, exceto que viviam em bairros pobres ou em periferia da cidade de São Paulo. 

Ora, que fosse baile, balada, pancadão, não importa se era hora imprópria, se era hora avançada na madrugada de sábado, não importa isso, também, porque nem isso poderá justificar tamanha opressão, nem mesmo o direito de calar a tiros vizinhos barulhentos. Afinal, que espécie de sociedade este país está se tornando?





O RESTO É SILÊNCIO


Tenho falado pouco. Na verdade, muito pouco, mesmo, quase nada. Somente, sim, ou somente, não, como resposta direta, pois quem se importa se não há mesmo o que se dizer quando não existem sequer ouvidos, sequer palavras, exceto um ar de solidão indiferente, todos compenetrados sobre suas janelas luminosas. Aqui no metrô, por exemplo, ainda permaneço olhando para o vazio, para o nada, através da minha janela viva, mais real. Estou tentando me acostumar com o que está acontecendo em minha volta. Espiei uma mulher um pouco mais afastada de mim, ela também me observa de relance. Está lendo um livro, aliás, uma coisa rara, hoje em dia. Curiosamente, o título do livro é O Resto é Silêncio, de Érico Veríssimo. Coincidência ou não, ando com este pensamento na cabeça. Talvez este sentimento não acontece só comigo, apesar de todo mundo andar assim, ultimamente. Reconheço: tornamo-nos mariposas de olhos enfeitiçados sobre as janelinhas dos celulares de luzes esplendorosas…
Oh, tudo bem, que se dane, afinal, quem se importa senão eu ou ela, ali sentada próxima de mim? Ora, ainda estamos desacostumados, deslocados no tempo, então aqui jaz incrédulos, solitários, continuamos a sós nesse vagão de metrô, o resto é silêncio, nada mais!


BRASIL: ANO 2019


De manhã cedo, um cidadão comum entrou no bar para tomar café antes de seguir para o trabalho. Eu estava ali, com minha xícara já pela metade. Enquanto ele aguardava no balcão, ao lado, também leu no jornal, em caixa alta, essa manchete:

PROCURADOR-GERAL DE REPÚBLICA PRETENDIA ASSASSINAR O MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Coitado, tive impressão de ele não ter acreditado no que lera, talvez pensasse ainda estar dormindo, sei lá. Engoliu seco, coçou brevemente a cabeça, em seguida disse ao garçom:

— Mudei de ideia, me traz um conhaque!

É. A vida anda cada vez mais difícil. Também pudera, no começo, eu também quase não acreditei, só não desisti do café.



O AZAR DA BORBOLETA



Uma vez li um artigo sobre as borboletas. Só não li os nomes científicos. São várias famílias ou classes. Passei por cima, é claro. São nomes esquisitos. Palavras complicadas de pronunciá-las, difícil de guardá-las na memória para lembrá-las depois. Suponho que somente biólogos, quiçá obsessivos colecionadores especialistas do ramo, é que conseguem facilmente dominar tal nomenclatura. De qualquer modo, achei o assunto muito interessante, por isso li o artigo até o fim.

Então vamos ao que interessa. As borboletas possuem um ciclo de vida em quatro fases: ovo, larva, pupa e imago, a última fase já como adulta. Além disso, elas são pré-históricas. Os fósseis mais antigos, por exemplo, são cerca de 50 milhões de anos atrás. Hoje, são muitas espécies espalhadas pelo planeta. Fiquei impressionado, é lógico, pois imagine só: elas borboleteavam fragilmente por entre brutamontes dinossauros de alongado pescoço!

Talvez seja por isso que, antes delas se tornarem belas borboletas, ainda sejam contemporâneas lagartas gordas e feias; aliás, na segunda fase da vida, elas também passam o dia inteiro devorando folhas. Só encerram a atividade alimentar depois de um ano, quando vão então para a terceira fase para hibernar na pupa, daí até o momento em que acontece a metamorfose, ganhando finalmente asas para voar como esbeltas borboletas. Evidentemente, todo o processo é muito impressionante.

Depois de um ano se arriscando a serem caçadas enquanto são famintas lagartas, depois se metamorfoseiam borboletas e mudam o cardápio, passando então a sugar o néctar das flores ou o suco dos frutos maduros caídos das árvores. No entanto, diferente do tempo anterior, muitas espécies borboleteiam somente por um dia para depois morrerem absurdamente! Considerei injusto esse paradoxo da natureza…

Pois, bem. Tive a sorte de ver com meus próprios olhos uma borboleta saindo do seu casulo. Foi por acaso, quando eu estava debaixo de uma árvore, aqui próximo de casa. Achei mesmo incrível, pois, diferentemente da lagarta que nasce do ovo, eu presenciei o momento exato em que ela surgiu da casca de pupa com suas asas coloridas em modo vertical.

Fiquei simplesmente embasbacado, maravilhado com a cena. Só não gostei do que vi depois. Não notei antes. A borboleta também. Acabara de sair e ainda estava ocupada em se limpar e exercitar as asas, já quase pronta para voar. Não levou muito tempo. Acredito que menos de um minuto, talvez. Então, levei um susto: uma língua fina e elástica laçou-a de cima do casulo de modo instantâneo…

Era um sapo verde. Estava ali o tempo todo, imóvel, camuflado entre as folhas. Senti um ódio mortal, o sapo ficou me olhando e sorriu com o mesmo sorriso irônico do pré-histórico lagarto — evidentemente esclareço não ter nada a ver com o macho da lagarta, até porque ela é um inseto e não um réptil escamado de quatro patas.

Enfim, senti pena da borboleta. Ela já estava pronta para inaugurar seu primeiro voo após passar o ano inteiro rastejando como lagarta, quem sabe até fugindo desse mesmo sapo ordinário, vai se saber… Coitada, justo agora que tinha somente 24 horas para borboletear livremente por aí, não viveu um minuto sequer! Muito azar, realmente.

Voltei pra casa desolado.





MEMÓRIAS SUCINTA DE UM ENFERMO





















Agora não adianta mais voltar. Na verdade, não há como fazer isso. Somente o tempo de seguir o resto do caminho por ser mais curto. Não estou me lamentando. Estou só relembrando de outrora rotina de farmácias.

Começa no café da manhã. Quatro comprimidos. À tarde são mais dois. Mantenho os remédios dentro duma caixa de sapatos. Isso lembra minha infância enferma, quando eu juntava frascos de vidros em caixas. Não sei por que fazia isso. Só colecionava…

Pensando bem, talvez o motivo fosse pelo fato de não poder caminhar. Tinha meu joelho esquerdo inflamado. A perna ficou encolhida, não conseguia desdobrá-la. Resultado de uma pancada na quina da porta. Estava correndo de pega-pega em casa. Era hiperativo naquele casarão do meu avô.

Fiquei de cama por quase um mês, não sei bem, o tempo corria muito devagar. A inflamação não cedia. O médico chegou a cogitar amputação do membro. Minha mãe não concordou. Chamou outro médico. Intuição de mãe.

Acredito que fiquei um ano em tratamento. Cheguei a juntar mais de dez caixas de sapatos com vidros de antibióticos de várias cores. Passava o dia inteiro numa cadeira alta de criança diante da mesa da cozinha. Minha avó colocava todas as caixas na minha frente para me distrair com os frascos enquanto cozinhava. Eu brincava de alquimista…

Agora estou velho. Não gosto de colecionar nada. Na verdade, mesmo se eu quisesse, não haveria mais como fazer isso. Hoje, comprimidos vêm em envelopes laminados e dentro de caixas de papelão fino.

Talvez, se minha avó ainda estivesse viva, talvez sentisse falta desses vidros nas farmácias. No entanto, não saberia como me distrair. Isso porque naquela época não havia outra opção.

Aliás, antes da paralisia, eu só gostava de correr pelo pomar e subir em árvores para comer frutas do pé. Não existia TV e muito menos os jogos eletrônicos para se distrair.

Hoje, a gurizada passa o dia sentada e correndo virtualmente, nem sentem a luz do sol. Pior que, desse jeito, vão ficar com as pernas fracas como eu. 





COM CHUVA OU SEM CHUVA





Preciso caminhar um pouco. Quase não caminho, ultimamente. Quem sabe subo a ladeira da minha rua? Não. Melhor pegar a descida. Detesto subir quando recém me levanto da cama. Aliás, descer todo santo ajuda. E quando eu retornar, a subida não será tão pior. É caminho mais curto. Posso voltar pelo atalho do meio, por ser mais plano e arborizado. Assim, economizarei energia para subir a parte mais íngreme. Não que eu seja preguiçoso, ou esteja só me queixando. É que continuo me recuperando da cirurgia. Tumor no intestino. Por sorte, não precisei usar sonda em momento algum. Além disso, ando enjoado de ver isso na televisão, nos jornais. Um saco. É devido à cirurgia que tenho passado muito tempo deitado. Isso é ruim. Tenho impressão de o meu corpo ficar mais mole do que o próprio colchão. Variadas posições já me cansam. Os braços, também. O livro começa a pesar. Cai das mãos. Perco a página, o parágrafo, o assunto e, quando isso acontece, é hora de caminhar.

Agora estou diante da porta, indeciso. Pensando bem, melhor eu subir a rua. Se eu descer, será pior. Ficarei cansado subindo depois. Tudo bem que eu tenha recém-levantado da cama. Não estava dormindo mesmo. Estava só lendo. Pelo menos estou relaxado. Terei mais energia de subir agora do que fazer isso depois. Também não quero ajuda de santo nenhum. É só vigarice. Droga. Parece que vem chuva. Do jeito que as nuvens se aproximam, a chuva pode ser mais forte. Pior. Para o lado de cima, não há muitas árvores. Se eu estiver caminhando e começar a chover, não terei muita opção de me proteger. O médico disse para não molhar o curativo. Hum! Para o lado de baixo, é bastante arborizado, mas é escorregadio devido às folhas. Melhor eu fechar a janela. Acabei de ver um relâmpago. Onde será que enfiei meu guarda-chuva? Se a chuva for muito forte, não adianta proteção nenhuma. Não encontro o guarda-chuva em lugar nenhum.

O vizinho ligou o rádio. Está trocando as estações, talvez procurando informações do tempo. Continuo procurando o guarda-chuva. Pelo visto, já deve estar chovendo aqui por perto, até sinto cheiro de chuva. O rádio continua pulando de estação em estação. Fala somente uns cinco ou seis segundos apenas. Agora é música sertaneja. Mais sertanejo, que diabo, milonga, que é bom, nem parece que existe, até parece que não somos mais gaúchos. Agora é notícia de assalto. Assassinato, também. Outra música sertaneja, benza Deus! Meteorologia? Nada! Agora o assunto é religião. Não sei se de padre ou de pastor, o vizinho está de dedos inquietos, mudou a estação, não deu tempo de saber. Sertanejo. Sertanejo, de novo. Outra estação, falando de religião, o pastor está dizendo: e a verdade vos libertará… Espera, não é pastor, não é padre. Meu Deus, é o diabo do presidente!

— Droga, subirei a rua sem guarda-chuva mesmo!


1964: O BRASIL ENTRE ARMAS E LIVROS



Fotografia de Sebastião Salgado (Serra Pelada)



Um amigo disse que, se eu assistisse esse documentário, 1964: O BRASIL ENTRE ARMAS E LIVROS, eu ficaria chocado com a revelação do movimento comunista atuando no país a ponto de ficar nervoso, indeciso, desconfiado…

— Tudo bem, assistirei por nossa sincera amizade — falei.

Pois, bem, assisti. Meu amigo tinha razão. De fato, fiquei mesmo chocado. Principalmente quando constatei que a foto do Sebastião Salgado, durante os anos 86 – 87 (Serra Pelada), estava sendo usada para registrar a guerrilha de Araguaia ocorrida entre 1967 – 1974.

Poxa! Fiquei alterado, nervoso! Além disso, sendo diabético, precisei tomar um copo d'água com açúcar porque tive uma súbita hipoglicemia! Sei que somos bons amigos, mas agora fiquei intrigado. Será que ele acreditou nisso, também?