RÉQUIEM






























Nós, morre, sim.
Ela é singularmente pural.
Sim, mais de uma vez
Perdem-se as contas de quantas vezes 
Se morre em cada amanhecer. 
A existência nem liga, esquece de nós:
Eu de você, você de mim.
Sim, nós morremos com os dias.
Não adianta lamentos, suspiros.
A vida não sabe mais mentir como antes,
Quando a verdade da morte parecia até nunca existir.

UM CARA DO MEU TEMPO

Desenho à caneta

Sou antigo. Século XX. Século romano, claro. Porque, sob a escala do tempo científico, obviamente não sou tão antigo assim como se pensa ser; ao contrário, sou um mero viajante ainda recém-nascido, há cerca de 200 mil anos, então só estou passando por aqui, neste planeta de quase cinco bilhões de anos, em verso e prosa, claro, também com café ou chimarrão por companhia à solidão. Trago a nostalgia na bagagem de mão, mas também um pouco de insatisfação. Sou um cara do meu tempo revisando poeticamente meu passado sem glorificação, apenas recordando que sou do tempo do LP e fita cassete e televisão. Sou do tempo das reuniões de garagem, de dançar agarradinho ouvindo a lenta canção. Também do tempo de rasgar o verso, a rima parnasiana. Do tempo em que se amava ler um bom livro em paz, em silêncio, horas a fio. Do tempo, aliás, de entrar no sebo em busca do livro de bolso de menor preço, mesmo que já estivesse cheio de mofo e traça. Sou do tempo em que eu escrevia cartas às vezes longas, às vezes curtas, dependendo do humor ou graça do dia, e havia envelopes e selos de todos os tipos junto ao bloco de pauta. Sou do tempo que dava flores para a namorada sem ela achar isso antiquado ou coisa de besta, mas por entender querer só fazer um agrado perfumado, dissimulando meu desodorante barato debaixo dos braços. Também sou do tempo do caderninho de fiado do armazém da esquina, daquele pão de um quarto ou meio quilo, ou de fritar bolinhos de chuva para assistir à sessão da tarde esticado no sofá da sala, entre portas e janelas escancaradas para a rua. Sou do tempo do jornal arremessado no pátio, ou à varanda em dias de chão molhado pela chuva. Sou do tempo do portão de trinco entreaberto, meu cão vira-lata fugindo para um breve passeio até o poste da esquina. Enfim, sou do tempo de sentar no muro baixo da casa, conversar com a vizinha, com a turma, nossos melhores amigos, então riamos, brincávamos, ou, em noite estrelada, em silêncio, admirávamos a lua cheia com ares de filósofo solene, pensativo. Sou do tempo de a gente respeitar a liberdade, mesmo com militares tiranos em nossos calcanhares. Sou do tempo dos festivais livres, apesar da música brasileira sob censura. Aliás, sou do tempo em que se ouvia Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius de Moraes, Chico Buarque de Holanda, Caetano e Gil e Belchior. Eram nossas tábuas salva-vidas românticas, líricas, que, durante a tempestade das influências, clamava por nossa própria musicalidade. Sou do tempo em que não se confundia o indigenista Vilas Boas com o erudito Villa Lobos, pois ambos amavam a floresta amazônica. Sou do tempo em transição, a perda da democracia por poderes da violência do AI-5. Sim, do tempo em que se matava, antes, para se perguntar depois. Sou do tempo que votei no sindicalista do ABC. Sou do tempo em que, apesar de a opinião pública andar ludibriada, acreditava na minha verdade, no meu amor e na minha razão, cujo triangulo era meu Norte. Por tudo isso, também era do tempo em que não se deveria criticar o sentimento da nação. Também não confundir a gentileza com temor ou covardia. Isso, claro, isso por questão de ter que ouvir mais e falar menos. Não que isso fosse questão de abuso de autoridade, mas porque todos têm duas orelhas e uma boca, portanto, falar menos, escutar mais. Afinal, poderia ser considerado desrespeito, falta de educação querer ensinar os mais velhos, mesmo que a maioria fosse, sim, da pá virada, não importava, a gente precisava continuar nossa caminhada.