ENQUANTO ELA NÃO CHEGAR
O NAMORO DOS ANJOS
Ela tem os cabelos negros, bem lisos, da mesma cor do seu próprio olhar. E o corpo, ah, o corpo, a textura de pele da cor de canela, que também vejo nesse café derramado sobre folhas brancas do caderno de poemas!
Ela é magra, os seios ainda miúdos, mas redondos no corpo
crescido de mulher! E quando, então, ela passa na minha calçada, com olhar
triste no chão, com passo tão curto, tão tímido, vindo de braços cruzados sobre
os seios apertados, parece não ver e nem sentir minha presença. Aliás, como se
ninguém estivesse mesmo por ali, nem eu existisse, somente ela passando em
silêncio, num silêncio noturno de mar…
Mas tudo isso acontece porque faz parte do nosso ritual de
fingir que não estávamos ali. Nenhum de nós existia, também, apenas esse longo
chove e não molha por mais de duas semanas seguidas, somente ela passando por
mim, enquanto, já de puro desejo por ela, eu precisava fingir de não entender, apenas
dissimular nada saber.
Era o nosso amor, o namoro dos anjos no mundo. Sim, ficamos
nesse bom viver romântico por quase dois anos, assim: ela pensando em mim,
enquanto eu acreditava nisso o tempo inteiro. E fazíamos quase tudo sempre
juntos. Era como um cinema o nosso passeio pelas ruas da cidade, sem dinheiro,
sem documentos, somente nossa identidade do olhar. Éramos felizes por ter um ao
outro, de verdade.
Um dia, porém, sei lá, nosso namoro desmoronou. Ela tomou
meu olhar de lua enciumada, que, quando dei por mim, eu estava mordendo os
lábios de raiva.
Então, começamos a dormir separados. Chorávamos por nós e
por tudo. E tudo, lentamente, morria cada vez mais um pouco em nós.
Agora olhamos o nosso namoro dos anjos seguindo mais longe,
além do horizonte, sobre as ondas do mar, deixando-nos a saudade profunda e
tão-somente sozinhos, muito sozinhos de nós mesmos e do mundo, também.
FILOSOFIA AO ANOITECER
Imagem Arnedo Javier Pérez |
De qual maneira, saber de onde vim. E para onde vou, ainda mais por também
saber que o céu, as estrelas, toda essa imensidão sem começo, sem fim, até
parece uma sorte do acaso a gente estar aqui.
Eis infinita grandeza, amiúde, sem começo,
sem fim, a dizer-me dos universos de seres e órbitas existentes aqui e acolá,
como se vivêssemos e morrêssemos presos ao chão sem saber nem para qual fim a
razão de existir.
Que me resta eu querer acreditar se a minha
fé não é tanta, ainda que constato ser uma existência, ainda que se perceba o
mistério da morte ser também a náusea que me consome até o fim.
Que me resta saber se nem sei onde tudo
começa e termina, como então saber esse mistério? Eis minha dúvida, quiçá não
existe o nada, mesmo, apenas tão-somente, isso: o óbvio de continuar sem nada
saber!
PRIMEIRA NOTA
O SONHO DA CONFEITARIA COLOMBO
O SONHO DA CONFEITARIA DA COLOMBO.
Tínhamos
que pegar uma torta de chocolate e mais duas bandejas de salgadinhos na
Confeitaria Colombo. Já estava
encomendada quando a minha mãe saiu bem cedo para trabalhar.
Agora, no
finalzinho da tarde, ela chegava com as sacolas de compras do supermercado,
trazendo carne, ovos, leite, frutas, café e pão para o nosso jantar. Isso, sem
esquecer do nosso beijo em seu rosto no mesmo instante em que mandava a gente
apagar as luzes porque ela dizia que não era sócia da Light.
Em
seguida, tornou-se a nos lembrar e nos apressar para buscarmos a encomenda sem
mais demora, acrescentando que suas amigas não tardariam a chegar, que iriam
confraternizar com o último dia de trabalho, o fim de ano.
De posse
da notinha e do dinheiro, eu e meu irmão, descemos no elevador e logo estávamos
na calçada de Nossa Senhora de Copacabana, próximo ao posto 6. A agitação da
avenida sempre estava intensa naquele horário, o trânsito mais ainda. Aliás,
isso até me fez pensar no bairro.
Copacabana,
no final dos anos 60, já era considerada uma espécie de cidade igual a muitas
cidades cosmopolitas espalhadas pelo mundo. Ao longo das três principais
avenidas, sempre estão repletas de veículos, de pedestres e de estabelecimentos
comerciais pelas quadras, além dos bares e restaurantes por toda a orla da
Atlântica, dando a perceber o contraste sonoro de muitos lugares. Isso se deve
ao fato de que muitas ruas transversais apresentam um silêncio inexplicável.
Talvez sejam os paredões dos edifícios construídos sob a influência do
concretismo francês, mas não estava bem certo disso, não saberia como explicar
isso melhor. Simplesmente a gente dobra uma esquina e toda a agitação se
transforma em um silêncio de rua arborizada, tal como o sossego das ruas de
cidadezinhas do interior.
Isso
também me fazia sentir um poeta urbano, desejando ouvir a nova música do jazz mais romântica. Nessa época, aliás,
o trompete de Mile Davis já
andava em voga junto à Bossa Nova
de Tom Jobim. Também, o
contraste doce da beleza de Brigitte
Bardot com a alegria rebelde de Leila Diniz. Podia-se dizer que tais influências se misturavam umas
às outras, inclusive com o surgimento do Rock’n rol. Era uma liberdade mais autêntica surgindo em nosso
bairro. Era também a nova expressão da juventude pelo mundo a fora, modificando
até o estilo de a gente se vestir. O Blue
Jeans, por exemplo, espalhara-se como a própria dimensão dos mares
continentais, logo ganhando todo o mercado da moda como nunca fora visto em
toda a história dos hábitos sociais e culturais do planeta. Sim, o mundo
estava mudando. Passávamos por estas bruscas transformações.
Enquanto
isso, a gente seguia pelas calçadas, já percorrendo o movimento longitudinal do
asfalto urbano da Zona Sul carioca. Sentíamos a energia da brisa suave, como se
fosse mesmo, um sonho ao vivo, real. Nascia, enfim, a verdadeira identidade
musical do nosso samba brasileiro com o jazz
norte-americano! Isso arrepiava nossos pelos dos braços só de sentir essa viva
emoção no ar. Estávamos conquistando o mundo musical, também.
Levei o
trajeto inteiro pensando em tudo isso. Agora, não. Já estava recebendo o troco
da encomenda, sentindo o doce cheiro do sonho espalhado por toda a confeitaria…
De
repente, não sei como isso aconteceu, fiquei com vontade de beijá-la, de abraçá-la
ali mesmo, no balcão, e mergulhar em seus sonhos também.
No
caminho de volta para a casa, quase duas quadras depois, por precaução, lembrei
de conferir o troco amassado nos dedos, então coloquei a torta sobre o capô de
um carro estacionado na calçada.
— O que
foi? — quis saber meu irmão, já segurando o passo com as duas bandejas de
salgadinhos suspensas em cada mão.
Não
respondi logo, não sabia como explicar isso naquele momento. Acho que ainda
lembrava do sorriso da garota, eu com água na boca.
Verifiquei
o troco. Inesperadamente, então, percebi que ela havia me devolvido todo o
valor da encomenda e mais o troco, também. Hesitei por um instante. Pensei
nas opções que eu poderia escolher: um ingresso de uma peça teatral que
desejava assistir há mais de duas semanas; o novo LP do Tom Jobim recém-lançado na praça; por último, novamente a lembrança
do belo sorriso dos olhos da garota a persistir em minha cabeça.
Voltamos
à Confeitaria (...)
Desculpe, mas se você gostou de ler isso, você pode conferir como termina esta estorinha, baixando o EBOOK pelo preço de um café expresso, afinal de contas, preciso valorizar o meu trabalho… não concorda comigo?