É PRECISO ESPERANÇA
A SOLIDÃO NÃO ESCOLHIDA
Sei que existem vários modos de sentir a
solidão. Claro, isso envolve o emocional, também.
Comigo, a solidão já vem desde a infância, quando eu achava mais interessante
brincar sozinho. Eu podia inventar minhas próprias brincadeiras sem que ninguém
dissesse como eu deveria agir, brincando assim
ou assado. Eu também participava com meus amigos, fosse jogando bola ou
lutando de espada de plástico como um guerreiro em batalha. Não havia televisão
nessa época, mas já existia o brinquedo bélico, nos atraindo para o confronto
armado. Tinha a marca 'estrela' como princípio qualitativo. Também havia o jogo
de bolita, a bolinha de gude, como dizem mais acima do país. Quem viveu essa
época ainda deve lembrar do círculo ou triângulo, o buraco, as regras, os
tipos, as cores, os tamanhos e o famoso olho de gato, e às vezes a gente saía
de bolso cheio, às vezes vazio. Portanto, existia a brincadeira solitária e a
brincadeira coletiva. No caso, eu gostava mais de brincar sozinho, porque, em
mim, habitavam centenas de seres iguais querendo se manifestar quase que, em
simultâneo, deixando-me ocupado por muito tempo, longe de participar com
brincadeiras coletivas. Gostava, inclusive, de jogar futebol sozinho, somente
eu e a bola, driblando todos os meus fantasmas que cruzassem meu caminho,
porque eu realizava gols com torcida soprada da minha garganta. Era mais
emocionante…
Por isso, eu acredito que existem vários
modos de sentir a solidão. Quando a gente cresce, por exemplo, descobre que
existe a solidão escolhida e a solidão que não se escolhe. A primeira, sem
dúvida, é uma velha solidão amiga de outrora. Ela cresce junta, nos acompanha
em tudo, a gente sempre está de boa com ela. A solidão que a gente não escolhe,
não, ela é terrível. Ela nos invade sem pedir licença, então se aloja no
espírito e não quer mais sair. Por vezes, até chego a pensar que ela sente
ciúmes ou inveja da solidão escolhida, sim, porque quando peço educadamente que
ela se afaste de mim, simplesmente dá de ombros ou finge dormir. Muitas vezes
ela me enganou, se escondeu, eu pensava ter me livrado dela, afinal. Que nada,
de repente, reaparece não sei vindo de onde, então vem mostrar que ela estava
ali o tempo todo comigo. É uma solidão intrusa, não é minha solidão escolhida,
a velha amiga. Esta, aliás, também anda mais sozinha, esquecida…
Então, quando chegou a pandemia, Deus do céu,
a solidão que a gente não escolhe tomou conta de tudo, não quer mais saber de
conceder espaço para a solidão escolhida. Muitas vezes a peguei de mala e cuia
junto à porta da minha alma. Depois de muita conversa, tento convencê-la do
erro de querer fugir de mim. É tarde, ela diz. De fato, acrescenta, é muito
difícil conviver com a solidão que a gente não escolheu, nem sequer imaginou
existir. Dá nos nervos, a gente perde a noção do tempo perdido. É uma solidão
nada agradável, ela se impõe de maneira tirana a ponto de me deixar deprimido…
Não sei mais o que faço. Ando preocupado, já
não durmo direito. A solidão escolhida anda sumida. Não encontro em nenhum
lugar de mim. Outro dia, sei lá, estava prostrado na cama e, de tanto ficar
dando ouvidos à solidão que não escolhi, acabei dormindo de tão cansado que
fiquei. Lembro, no entanto, que a TV estava ligada e o noticiário falava de
mais de 210 mil mortos pela Covid-19…
Ando pensando seriamente em arrumar minhas
malas e fugir para bem longe daqui, também. Talvez eu encontre minha solidão
escolhida. Sinto saudades, ela era tão amiga, leal, companheira, de verdade.
Coitada, agora percebo sofrer por mim, mas não aguentou a solidão que não
escolhi, não aguentou ficar vendo eu sofrer.
DE TRAGÉDIA EM TRAGÉDIA ALÉM DO BANG-BANG
Tantas atrocidades ao meio de bizarrices acontecendo em simultâneo. Os meios tornam-se os fins, os fins tornam-se os meios, e fica tudo por isso mesmo, sem a necessidade de justificar estas esquisitas atitudes, tintim por tintim. Ora, para que explicar, amiúde, se desde o começo tudo ficou assim, quando a placa com o nome de Marielle Franco, por exemplo, foi rasgada em plena campanha eleitoral, cerca de 7 meses depois do seu assassinato?
Para que explicar os motivos que levaram ao incêndio do Museu Nacional se antes a necessidade de melhores reparos técnicos já estava previamente advertida?
Falar nisso, lembremos da tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria. O prédio não havia nem sequer saída de emergência. Aliás, esses exemplos não evocariam por si só uma advertência quando também ocorreu a tragédia de Brumadinho após a tragédia de Mariana?
E o que dizer das queimadas no Amazonas e centro oeste, inclusive atingindo o pantanal, quando já havia o prenúncio de encontro de incendiários pelo WhatsApp?
O que dizer do óleo derramado em alto mar, logo atingindo as praias do Nordeste? Por acaso, apuraram-se as responsabilidades com seriedade, com mais afinco?
Agora são notícias de assassinatos constantes. Muitos com envolvimento da segurança pública. Sempre assim, bala perdida, acidente com as mortes por engano.
Não se precisa ir muito longe. Dentre tantos crimes ocorridos no ano de 2019, a morte do músico fuzilado com mais de 80 tiros ou a morte de estudantes da periferia do Rio de Janeiro, incluindo-se a menina Agatha, não passaram tão assim despercebidos. São crimes, sim, com responsabilidade do Estado por avalizar o excludente de ilicitude defendido pelo próprio presidente da república. Daí tragédias além do bang-bang. O ano já termina com quase 40 mil assassinatos no país, apesar de as estatísticas apontarem redução se comparada ao ano passado. Não imposta. São crimes. São mortes de inocentes, incluindo-se crianças e jovens, que morrem continuamente. Seja em dia útil, seja em dia de lazer, como agora, a recente morte de nove jovens que não possuíam nenhum histórico criminal, exceto que viviam em bairros pobres ou em periferia da cidade de São Paulo.
Ora, que fosse baile, balada, pancadão, não importa se era hora
imprópria, se era hora avançada na madrugada de sábado, não importa isso,
também, porque nem isso poderá justificar tamanha opressão, nem mesmo o direito
de calar a tiros vizinhos barulhentos. Afinal, que espécie de sociedade este
país está se tornando?
O RESTO É SILÊNCIO
BRASIL: ANO 2019
De manhã cedo, um cidadão comum entrou no bar para tomar café antes de seguir para o trabalho. Eu estava ali, com minha xícara já pela metade. Enquanto ele aguardava no balcão, ao lado, também leu no jornal, em caixa alta, essa manchete:
PROCURADOR-GERAL DE REPÚBLICA PRETENDIA ASSASSINAR O MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Coitado, tive impressão de ele não ter acreditado no que lera, talvez pensasse ainda estar dormindo, sei lá. Engoliu seco, coçou brevemente a cabeça, em seguida disse ao garçom:
— Mudei de ideia, me traz um conhaque!
É. A vida anda cada vez mais difícil. Também pudera, no começo, eu também quase não acreditei, só não desisti do café.