O RESTO É SILÊNCIO
BRASIL: ANO 2019
De manhã cedo, um cidadão comum entrou no bar para tomar café antes de seguir para o trabalho. Eu estava ali, com minha xícara já pela metade. Enquanto ele aguardava no balcão, ao lado, também leu no jornal, em caixa alta, essa manchete:
PROCURADOR-GERAL DE REPÚBLICA PRETENDIA ASSASSINAR O MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Coitado, tive impressão de ele não ter acreditado no que lera, talvez pensasse ainda estar dormindo, sei lá. Engoliu seco, coçou brevemente a cabeça, em seguida disse ao garçom:
— Mudei de ideia, me traz um conhaque!
É. A vida anda cada vez mais difícil. Também pudera, no começo, eu também quase não acreditei, só não desisti do café.
O AZAR DA BORBOLETA
Então vamos ao que interessa. As borboletas possuem um ciclo
de vida em quatro fases: ovo, larva, pupa e imago, a última fase já como
adulta. Além disso, elas são pré-históricas. Os fósseis mais antigos, por
exemplo, são cerca de 50 milhões de anos atrás. Hoje, são muitas espécies
espalhadas pelo planeta. Fiquei impressionado, é lógico, pois imagine só: elas
borboleteavam fragilmente por entre brutamontes dinossauros de alongado
pescoço!
Talvez seja por isso que, antes delas se tornarem belas
borboletas, ainda sejam contemporâneas lagartas gordas e feias; aliás, na
segunda fase da vida, elas também passam o dia inteiro devorando folhas. Só
encerram a atividade alimentar depois de um ano, quando vão então para a
terceira fase para hibernar na pupa, daí até o momento em que acontece a
metamorfose, ganhando finalmente asas para voar como esbeltas borboletas.
Evidentemente, todo o processo é muito impressionante.
Depois de um ano se arriscando a serem caçadas enquanto são
famintas lagartas, depois se metamorfoseiam borboletas e mudam o cardápio,
passando então a sugar o néctar das flores ou o suco dos frutos maduros caídos
das árvores. No entanto, diferente do tempo anterior, muitas espécies
borboleteiam somente por um dia para depois morrerem absurdamente! Considerei
injusto esse paradoxo da natureza…
Pois, bem. Tive a sorte de ver com meus próprios olhos uma
borboleta saindo do seu casulo. Foi por acaso, quando eu estava debaixo de uma
árvore, aqui próximo de casa. Achei mesmo incrível, pois, diferentemente da
lagarta que nasce do ovo, eu presenciei o momento exato em que ela surgiu da
casca de pupa com suas asas coloridas em modo vertical.
Fiquei simplesmente embasbacado, maravilhado com a cena. Só não
gostei do que vi depois. Não notei antes. A borboleta também. Acabara de sair e
ainda estava ocupada em se limpar e exercitar as asas, já quase pronta para
voar. Não levou muito tempo. Acredito que menos de um minuto, talvez. Então, levei
um susto: uma língua fina e elástica laçou-a de cima do casulo de modo
instantâneo…
Era um sapo verde. Estava ali o tempo todo, imóvel,
camuflado entre as folhas. Senti um ódio mortal, o sapo ficou me olhando e
sorriu com o mesmo sorriso irônico do pré-histórico lagarto — evidentemente
esclareço não ter nada a ver com o macho da lagarta, até porque ela é um inseto
e não um réptil escamado de quatro patas.
Enfim, senti pena da borboleta. Ela já estava pronta para
inaugurar seu primeiro voo após passar o ano inteiro rastejando como lagarta,
quem sabe até fugindo desse mesmo sapo ordinário, vai se saber… Coitada, justo
agora que tinha somente 24 horas para borboletear livremente por aí, não viveu
um minuto sequer! Muito azar, realmente.
Voltei pra casa desolado.
MEMÓRIAS SUCINTA DE UM ENFERMO
Agora não adianta mais voltar. Na
verdade, não há como fazer isso. Somente o tempo de seguir o resto do caminho
por ser mais curto. Não estou me lamentando. Estou só relembrando de outrora
rotina de farmácias.
Começa no café da manhã. Quatro comprimidos. À tarde são mais dois. Mantenho os remédios dentro duma caixa de sapatos. Isso lembra minha infância enferma, quando eu juntava frascos de vidros em caixas. Não sei por que fazia isso. Só colecionava…
Pensando bem, talvez o motivo fosse pelo fato de não poder caminhar. Tinha meu joelho esquerdo inflamado. A perna ficou encolhida, não conseguia desdobrá-la. Resultado de uma pancada na quina da porta. Estava correndo de pega-pega em casa. Era hiperativo naquele casarão do meu avô.
Fiquei de cama por quase um mês, não sei bem, o tempo corria muito devagar. A inflamação não cedia. O médico chegou a cogitar amputação do membro. Minha mãe não concordou. Chamou outro médico. Intuição de mãe.
Acredito que fiquei um ano em tratamento. Cheguei a juntar mais de dez caixas de sapatos com vidros de antibióticos de várias cores. Passava o dia inteiro numa cadeira alta de criança diante da mesa da cozinha. Minha avó colocava todas as caixas na minha frente para me distrair com os frascos enquanto cozinhava. Eu brincava de alquimista…
Agora estou velho. Não gosto de colecionar nada. Na verdade, mesmo se eu quisesse, não haveria mais como fazer isso. Hoje, comprimidos vêm em envelopes laminados e dentro de caixas de papelão fino.
Talvez, se minha avó ainda estivesse viva, talvez sentisse falta desses vidros nas farmácias. No entanto, não saberia como me distrair. Isso porque naquela época não havia outra opção.
Aliás, antes da paralisia, eu só gostava de correr pelo pomar e subir em árvores para comer frutas do pé. Não existia TV e muito menos os jogos eletrônicos para se distrair.
Hoje, a gurizada passa o dia sentada e correndo virtualmente, nem sentem a luz do sol. Pior que, desse jeito, vão ficar com as pernas fracas como eu.
COM CHUVA OU SEM CHUVA
Preciso caminhar um
pouco. Quase não caminho, ultimamente. Quem sabe subo a ladeira da minha rua?
Não. Melhor pegar a descida. Detesto subir quando recém me levanto da cama.
Aliás, descer todo santo ajuda. E quando eu retornar, a subida não será tão
pior. É caminho mais curto. Posso voltar pelo atalho do meio, por ser mais
plano e arborizado. Assim, economizarei energia para subir a parte mais
íngreme. Não que eu seja preguiçoso, ou esteja só me queixando. É que continuo
me recuperando da cirurgia. Tumor no intestino. Por sorte, não precisei usar
sonda em momento algum. Além disso, ando enjoado de ver isso na televisão, nos
jornais. Um saco. É devido à cirurgia que tenho passado muito tempo deitado.
Isso é ruim. Tenho impressão de o meu corpo ficar mais mole do que o próprio
colchão. Variadas posições já me cansam. Os braços, também. O livro começa a
pesar. Cai das mãos. Perco a página, o parágrafo, o assunto e, quando isso
acontece, é hora de caminhar.
Agora
estou diante da porta, indeciso. Pensando bem, melhor eu subir a rua. Se eu
descer, será pior. Ficarei cansado subindo depois. Tudo bem que eu tenha
recém-levantado da cama. Não estava dormindo mesmo. Estava só lendo. Pelo menos
estou relaxado. Terei mais energia de subir agora do que fazer isso depois.
Também não quero ajuda de santo nenhum. É só vigarice. Droga. Parece que vem
chuva. Do jeito que as nuvens se aproximam, a chuva pode ser mais forte. Pior.
Para o lado de cima, não há muitas árvores. Se eu estiver caminhando e começar
a chover, não terei muita opção de me proteger. O médico disse para não molhar
o curativo. Hum! Para o lado de baixo, é bastante arborizado, mas é
escorregadio devido às folhas. Melhor eu fechar a janela. Acabei de ver um
relâmpago. Onde será que enfiei meu guarda-chuva? Se a chuva for muito forte,
não adianta proteção nenhuma. Não encontro o guarda-chuva em lugar nenhum.
O
vizinho ligou o rádio. Está trocando as estações, talvez procurando informações
do tempo. Continuo procurando o guarda-chuva. Pelo visto, já deve estar
chovendo aqui por perto, até sinto cheiro de chuva. O rádio continua pulando de
estação em estação. Fala somente uns cinco ou seis segundos apenas. Agora é
música sertaneja. Mais sertanejo, que diabo, milonga, que é bom, nem parece que
existe, até parece que não somos mais gaúchos. Agora é notícia de assalto.
Assassinato, também. Outra música sertaneja, benza Deus! Meteorologia? Nada!
Agora o assunto é religião. Não sei se de padre ou de pastor, o vizinho está de
dedos inquietos, mudou a estação, não deu tempo de saber. Sertanejo. Sertanejo,
de novo. Outra estação, falando de religião, o pastor está dizendo: e a verdade vos libertará… Espera, não é
pastor, não é padre. Meu Deus, é o diabo do presidente!
—
Droga, subirei a rua sem guarda-chuva mesmo!