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Charge: Carlos Latuff |
Anistia: A Memória Que Não Cura.
Há países que
carregam seus passados como cicatrizes, não como fantasmas. No Brasil, porém, a
linha entre a cicatriz e o espectro é tênue. A anistia de 1979 foi um pacto de
silêncio costurado com fios de esquecimento: perdoaram-se presos políticos e
carrascos num mesmo gesto, como se a história pudesse ser equilibrada numa
balança de retórica. O problema é que esquecer não cura. Somente adia a febre.
Quatro décadas depois, a pergunta ecoa: como anistiar outra vez quem jamais
reconheceu o peso do que fez? A democracia brasileira, reconstruída sobre
alicerces frágeis, aprendeu a andar mancando. Não por falta de coragem, mas
porque alguns insistem em tropeçar nas próprias sombras. Os torturadores desse
recente passado não se arrependeram; apenas se camuflaram sob novas roupagens.
Tornaram-se políticos, empresários, vozes que sussurram nos corredores do poder
que esse passado já passou. Mas o passado, mesmo, somente passa quando é olhado
de frente.
A anistia, em sua essência, deveria ser um ato de generosidade, não de
cumplicidade. Em 1979, o perdão foi uma moeda de troca para uma transição que
preferiu a conciliação à justiça. O resultado? Um país que trata a memória como
incômodo. As vítimas seguem à espera de um Nunca Mais que seja pronunciado sem
hesitação, enquanto os algozes seguem invocando a legalidade de seus crimes. A
impunidade, quando institucionalizada, vira um vírus. Contamina o presente,
também.
Não é casual que o tema da anistia não mobilize multidões hoje. Ele nos
lembra de uma ferida que nunca sangra, mas também nunca sara. É mais fácil
discutir inflação ou futebol. A dor histórica, porém, tem um modo peculiar de
ressurgir: nas rusgas políticas que repetem o autoritarismo como piada pronta,
nas ameaças a instituições que ainda cheiram a pólvora, no desdém por direitos
conquistados com lágrimas. Quem não aprende com o ontem, repete o ontem — mesmo
que em tom pastelão.
Anistiar novamente seria como assinar um atestado de que a democracia é
um acordo, não um valor. É confundir perdão com amnésia. O verdadeiro perdão,
aquele que liberta, exige verdade. E a verdade não é uma negociata. É um
espelho. Nele, o país precisa se enxergar: com suas cicatrizes, seus mortos não
enterrados, suas promessas quebradas.
Talvez o Brasil precise de menos anistia e mais memória. Menos pactos nos gabinetes e mais nomes nos monumentos.
Também menos medo de revirar o solo e mais coragem para plantar justiça onde
houve deserto. Porque um país que perdoa sem exigir arrependimento é como um
pai que acolhe o filho agressor sem perguntas: alimenta a violência que diz
combater.
A democracia não se sustenta com perdões de araque. Ela se constrói quando as feridas são nomeadas, quando os algozes são obrigados a encarar o que fizeram, não pela punição, mas pelo dever de não mais repetir o sórdido erro. Enquanto o verbo “anistiar” for sinônimo de apagar, seguiremos tropeçando no mesmo abismo. O passado não pede vingança, pede apenas que não mintamos sobre ele. Afinal, como escreveu um sobrevivente das celas do DOI-CODI:
“O silêncio dos inocentes é o aplauso dos carrascos”.