29 de mar. de 2025

ANISTIA: A MEMÓRIA QUE NÃO CURA

 
Charge: Carlos Latuff

Anistia: A Memória Que Não Cura.


Há países que carregam seus passados como cicatrizes, não como fantasmas. No Brasil, porém, a linha entre a cicatriz e o espectro é tênue. A anistia de 1979 foi um pacto de silêncio costurado com fios de esquecimento: perdoaram-se presos políticos e carrascos num mesmo gesto, como se a história pudesse ser equilibrada numa balança de retórica. O problema é que esquecer não cura. Somente adia a febre.

 

Quatro décadas depois, a pergunta ecoa: como anistiar outra vez quem jamais reconheceu o peso do que fez? A democracia brasileira, reconstruída sobre alicerces frágeis, aprendeu a andar mancando. Não por falta de coragem, mas porque alguns insistem em tropeçar nas próprias sombras. Os torturadores desse recente passado não se arrependeram; apenas se camuflaram sob novas roupagens. Tornaram-se políticos, empresários, vozes que sussurram nos corredores do poder que esse passado já passou. Mas o passado, mesmo, somente passa quando é olhado de frente.

 

A anistia, em sua essência, deveria ser um ato de generosidade, não de cumplicidade. Em 1979, o perdão foi uma moeda de troca para uma transição que preferiu a conciliação à justiça. O resultado? Um país que trata a memória como incômodo. As vítimas seguem à espera de um Nunca Mais que seja pronunciado sem hesitação, enquanto os algozes seguem invocando a legalidade de seus crimes. A impunidade, quando institucionalizada, vira um vírus. Contamina o presente, também.

 

Não é casual que o tema da anistia não mobilize multidões hoje. Ele nos lembra de uma ferida que nunca sangra, mas também nunca sara. É mais fácil discutir inflação ou futebol. A dor histórica, porém, tem um modo peculiar de ressurgir: nas rusgas políticas que repetem o autoritarismo como piada pronta, nas ameaças a instituições que ainda cheiram a pólvora, no desdém por direitos conquistados com lágrimas. Quem não aprende com o ontem, repete o ontem — mesmo que em tom pastelão.

 

Anistiar novamente seria como assinar um atestado de que a democracia é um acordo, não um valor. É confundir perdão com amnésia. O verdadeiro perdão, aquele que liberta, exige verdade. E a verdade não é uma negociata. É um espelho. Nele, o país precisa se enxergar: com suas cicatrizes, seus mortos não enterrados, suas promessas quebradas.

 

Talvez o Brasil precise de menos anistia e mais memória. Menos pactos nos gabinetes e mais nomes nos monumentos. Também menos medo de revirar o solo e mais coragem para plantar justiça onde houve deserto. Porque um país que perdoa sem exigir arrependimento é como um pai que acolhe o filho agressor sem perguntas: alimenta a violência que diz combater.


A democracia não se sustenta com perdões de araque. Ela se constrói quando as feridas são nomeadas, quando os algozes são obrigados a encarar o que fizeram, não pela punição, mas pelo dever de não mais repetir o sórdido erro. Enquanto o verbo “anistiar” for sinônimo de apagar, seguiremos tropeçando no mesmo abismo. O passado não pede vingança, pede apenas que não mintamos sobre ele. Afinal, como escreveu um sobrevivente das celas do DOI-CODI: 

“O silêncio dos inocentes é o aplauso dos carrascos”.

 

Que o Brasil não seja plateia de sua própria tragédia.



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